O que há de errado com este artigo de O GLOBO?

8 12 2008
Primeira página do Caderno Prosa e Verso, O GLOBO, 6/12/2008

Primeira página do Caderno Prosa e Verso, O GLOBO, 6/12/2008

 

No sábado passado, dia 6 de dezembro, o jornal matutino carioca, O GLOBO, apresentou um artigo sobre os romances populares no século XIX no Brasil.  O artigo de Miguel Conde comenta sobre os livros que re-editam histórias populares da época; romances publicados aos capítulos nos jornais do reino, da mesma maneira em que muitas outras obras de peso no século XIX foram publicadas em outras partes do mundo.  Era comum.

O artigo revela ainda alguns hábitos interessantes da leitura no Brasil imperial e colonial e o jornal em espaços diferentes faz uma complementação com uma lista dos livros mais vendidos no Brasil Colônia e também com uma resenha do que havia nos catálogos de três livreiros no século XIX.

Páginas 1 e 2 tratam quase que exclusivamente de hábitos de leitura, assim como de títulos populares no Brasil imperial.  E no entanto, o jornal O GLOBO, preferiu ilustrar suas páginas não com artistas brasileiros mostrando pessoas lendo, mas ao invés, mostrou mais uma vez a mentalidade de colonia cultural ao escolher trabalhos do francês Jean-Auguste Renoir e da americana Mary Cassat, ambos com imagens de mulheres lendo livros.

Página 2 do Caderno Prosa e Verso do Jornal O GLOBO

Página 2 do Caderno Prosa e Verso do Jornal O GLOBO

A pergunta que não cala:  por quê?  Por que um artigo sobre hábitos de leitura no Brasil não é ilustrado com mulheres brasileiras lendo?  Isto leva o leitor ao total desconhecimento de sua própria cultura e ao reconhecimento exclusivamente de outras imagens, iconografias que não têm nada a ver com a realidade brasileira, com o talento dos artistas brasileiros. 

Este tipo de ignorância dos valores culturais brasileiros precisa acabar.  Com este fim, enviei ontem, o seguinte email que aqui transcrevo para Mànya Millen, que imagino ser uma senhora, que está encarregada da editoria do caderno Prosa e Verso. 

Aqui está a transcrição: 

Prezada Mànya Millen,
 
Muito obrigada pelo interessantíssimo artigo Best Sellers REAIS, no Caderno Prosa e Verso que a senhora editora.  O artigo de Miguel Conde foi muito ilustrativo e bem escrito.  Tenho no entanto um problema com as imagens escolhidas para ilustrar um artigo sobre a leitura no Brasil no século XIX.  É um reclamação pequena, mas acredito que importante.
 
Por que não ilustrar este artigo com arte brasileira, de uma mulher lendo?   Estes quadros existem.  E falam mais a nós brasileiros do que o Renoir ou a Mary Cassat que vocês acharam por bem usar.
 
Um dos quadros mais famosos no Brasil é o da Moça lendo de José Ferraz de Almeida Júnior, um pintor brasileiro, que nasceu e morreu no estado de São Paulo, (Brasil 1850-1899).  Este quadro, pintado em 1879, encontra-se no MASP (Museu de Arte de São Paulo) e tenho certeza de que o museu não colocaria obstáculos na sua reprodução pelo O GLOBO. 
 
Na verdade, o mesmo pintor tem alguns outros quadros de mulheres lendo que também poderiam ter sido aproveitados no lugar do ultra batido RENOIR, que não aumenta o conhecimento do brasileiro por sua própria cultura.
 
Bertha Worms, Tarsila do Amaral, Henrique Bernardelli, Aurélio d’Alincourt, Di Cavalcanti entre outros tem quadros bastante conhecidos que seriam uma melhor maneira de transmitir a cultura brasileira e acabar com esta sensação de ex-colônia, cujo único lugar no mundo que importa encontra-se fora do Brasil.
 
Morei muitos anos no estrangeiro.  E posso lhe dizer que nem nos EUA, nem na França, nem mesmo em Portugal, um jornal ao ilustrar um artigo sobre a leitura do país deles ilustraria o artigo com artistas estrangeiros.  Sinto ter que lhes chamar a atenção para este detalhe cultural.  Mas acredito fortemente que é assim que se constrói, que se educa, que se valoriza a cultura brasileira.
 
PS: Esta carta será publicada no meu blog, Peregrina Cultural. ( https://peregrinacultural.wordpress.com.br )
 
 
Atenciosamente,
 
 
Ladyce West
José Ferraz de Almeida Jr (Brasil,1850-1899) Moça com livro, 1879, MASP

José Ferraz de Almeida Jr (Brasil,1850-1899) Moça com livro, s/d, óleo sobre tela, 50 x 61 cm, MASP -- Museu de Arte de São Paulo

 

É este tipo de descuido com o que é nosso que precisa acabar.  E só vai acabar quando pessoas como nós, que conhecemos mais, que sabemos mais, batermos com o pé para dizer:  BASTA!  Não quero mais esta visão neo-colonial do Brasil, como se o centro do mundo estivesse fora daqui.  O meu centro cultural está aqui.  Principalmente quando o assunto é literatura no Brasil, no século XIX.  Então, por quê?  Qual é a razão deste despropósito?


Ações

Information

6 responses

10 12 2008
Avatar de Lígia Lígia

Ladyce,
Super oportuna tua mensagem.
Se todos nós desenvolvermos esta iniciativa de explicitar o que vai no coração, certamente que caminhos melhores serão trilhados, com valorização da subjetividade brasileira.
Linda imagem, não conhecia.
Parabéns!

12 12 2008
Avatar de Ju Sampaio Ju Sampaio

Belíssima imagem a deste quadro de José Ferraz de Almeida Jr. Ficaria excelente na capa do Prosa & Verso.

23 01 2013
Avatar de Cristina Siqueira Cristina Siqueira

Bravíssima!
Que bom este arroubo de brasilidade no que nos tange em importância.Percebo em mim a distância pelas nossas coisas envolvida em apreciar o alheio.Seu “toque “é perfeito,obrigada.

23 01 2013
Avatar de peregrinacultural peregrinacultural

Obrigada Cristina. 🙂

25 01 2013
Avatar de Gean Sandes Gean Sandes

Não me admira que tais atitudes partam de um grupo midiático tão subserviente à cultura “superior da metrópole”. Ainda bem que temos hoje o anarquismo da internet para contestar. Não leio o globo, não vejo a globo, não acesso o globo, para este grupo, sou um alienígena.

25 01 2013
Avatar de peregrinacultural peregrinacultural

Sim, é difícil, morando-se no Rio de Janeiro, escapar do abraço do grupo GLOBO. Os dois maiores jornais da cidade estão nas mãos do grupo. As televisões paulistas não cobrem com a necessária regularidade e o necessário detalhe as notícias locais. Em termos de noticiários nacionais até temos opções do ESTADÃO até as televisões e rádios de outros grupos, mas para se saber o que acontece no nivel local… fica difícil. Obrigada por sua opinião, 🙂

Deixe um comentário